sábado, 8 de agosto de 2020

Etnomedicina & plantas calmantes

¿ cabe aos profissionais de saúde estimular o uso e valer-se do conhecimento popular sobre plantas medicinais na pratica terapêutica dos transtornos mentais ?

Plantas calmantes, emolientes, peitorais. 
Larousse Medical Illustré, Paris, 1912. Galtier-Boissière (org.)

Etnomedicina pode ser compreendida como uma interdisciplina ou área de pesquisa e aplicação da etnologia cujo objeto são as práticas culturais voltadas para conservação e recuperação da saúde ou a medicina, como o nome indica. Envolve as descrições etnográficas sobre pessoas, os sujeitos praticantes, suas práticas e crenças (o saber popular e mitologia)  de uma cultura específica, usualmente de povos indígenas ou considerados primitivos, previne e trata as doenças, e/ou realiza os estudos etnológicos comparativos dessa prática, simultaneamente questionando as teorias que dão suporte a essa comparação.

Por seu objeto de estudo estar associado à utilização de plantas medicinais pode ser considerada como um sub-campo associado à etnobotânica ou incluído na antropologia médica que lida com o estudo das medicinas tradicionais, não apenas aquelas que têm fontes escritas e sistemas “profissionais” não hegemônicos (por exemplo, medicina tradicional chinesa ou ayurvédica), [1; 2] mas sobretudo aquelas cujo corpo de conhecimentos e práticas têm sido transmitidos oralmente ao longo dos séculos.

Observe-se porém que os sistemas culturais, em sua forma originária ou selvagem do pensamento, agir como esquemas classificatórios e organizadores do conhecimento das plantas, não se limita a este, e muitas vezes, o processo ritual terapêutico e as intervenções físicas  no corpo são, tão, ou mais importantes que o efeito farmacológico propriamente dito. Na Medicina Tradicional Chinesa a acupuntura e a fitoterapia são um típico exemplo. 

Observe-se também que apesar  do muito que já se aprendeu e lucrou  com a identificação de plantas medicinais utilizadas inicialmente somente por algumas etnias, isoladas do processo civilizatório, perderam seu referencial de origem e passaram a fazer parte das farmacopéias nacionais que integram a medicina cosmopolita universal e/ou deram origem à fármacos modernos. São reativamente limitados e difundidos os estudos, sobretudo clínicos, sobre o uso correto ou eficaz de grande parte das plantas.que integram os sistemas etnomédicos tradicionais, geralmente limitando-se aos produtos comercializáveis. 

Não há como competir com a ‘precisão científica’ associada ao marketing comercial dos medicamentos sintéticos e mesmos extratos comercializados pela indústria farmacêutica multinacional, a “big pharma” integrada ao complexo médico-industrial-financeiro.

Contudo tanto a utilização de plantas medicinais (estudadas farmacologicamente ou não) e rituais terapêuticos persistem, como disse Estrela [2], contrapondo-se à medicina cosmopolita hegemônica. Em função da diversidade existente são designados como  "medicina alternativa" ou  “práticas integrativas e medicina complementar”.

Segmentos empresariais ávidos de lucro e com limitada compreensão sobre o que é o conhecimento humano, aliado a crenças racistas ou elitistas e interesses escusos, tentam rotular essas formas de conhecimento tradicional como pseudociência desconhecendo sua especificidade enquanto etnopráticas de origem cultural diversa, ignorando resultados aparentemente anedóticos e mesmo sua plausibilidade biológica. Tais detratores limitam-se a afirmar  que não foram testadas e apresentaram resultados superiores ao efeito placebo, não são testáveis por recorrerem a explicações espirituais, religiosas ou simples crenças sedimentadas em tradições, sobre os quais apenas existem estudos inconclusivos provando a sua eficácia, concluindo, quase sempre, nas revisões sistemáticas apresentadas, que são necessários novos estudos.

A postura da Organização Mundial de Saúde frente a utilização de tratamentos alternativos é a de pesquisar, implementar o desenvolvimento de políticas proativas com planos de ação que fortalecerão o papel da medicina tradicional e ao mesmo tempo orientar no sentido de ter cautela, devido ao fato de existirem muitos terapeutas despreparados, conhecendo mal as "teorias" relacionadas a crenças tradicionais, além de pessoas inescrupulosas que se valem da boa fé e falta de informação para ludibriar e obter benefícios próprios. Nos dias de hoje esta é uma recomendação válida na maioria das situações do cotidiano, e ocorre em todos os setores profissionais e comerciais.

Ansiolíticos e sedativos

Ansiolíticos, do ponto de vista farmacológico são drogas, sintéticas ou não, usadas para diminuir a ansiedade e a tensão, com um efeito sedativo ou calmante, [4]. Segundo Viktor Frankl (1905 - 1997) [5] o neuropsiquiatra austríaco fundador da escola de psicoterapia conhecida como Logoterapia e Análise Existencial as primeiras drogas utilizadas como tranquilizantes no mundo europeu foram os relaxantes musculares (o glicerinato de guaiacol comercializado como “mioscaína” e análogos assim como os meprobomatos (miltaun, equanil e outros) e posteriormente os derivados da piperazina.

Segundo este autor o que caracteriza todos esses preparados, como denominador comum, é o seu poder de interromper e bloquear vis de condução polisinápticas sem atuar sobre os centros vegetativos ao contrário da neuroplégica (neuroléptica  ação sedativa sobre os centros nervosos) e da timoléptica (fármacos com ação antidepressiva e psicoestimulante) , além de não causarem um amortecimento do mesencéfalo ao contrário dos hipnóticos. (Frankl oc.. p.96)

A utilização de tais substancias  teve um crescimento aumentado entre 1960 e 1980. Nesse período, mais de 10% da população consumia ansiolíticos de maneira regular ou esporádica. [6] Se por um lado os grandes neurolépticos tipo (clorpromazina) e antipsicóticos derivados, diminuíram a demanda de contenção física de alguns internos em hospitais psiquiátricos (“camisa de força”, “quarto forte” etc.) geraram por sua vez riscos de overdose (sobretudo barbitúricos), síndromes de dependência e diversos outros efeitos colaterais.

O termo sedativo é sinônimo de calmante ou tranquilizante. Um medicamento hipnótico ou sonífero deve produzir sonolência e estimular o início e a manutenção de um estado de sono que se assemelhe o mais possível ao estado do sono natural. Os efeitos hipnóticos envolvem uma depressão mais profunda do sistema nervoso central (SNC) do que a sedação. A depressão gradativa dose-dependente da função do SNC constitui uma característica dos agentes sedativos-hipnóticos, na seguinte ordem: sedação, hipnose, anestesia, efeitos sobre a respiração/função cardiovascular e coma. Cada medicamento difere na relação entre a dose, sistema polisináptico de atuação e o grau de depressão do SNC.

Plantas calmantes

Algumas plantas possuem propriedades ansiolíticas ou calmantes, por mecanismos diversos. [7] [8] Apesar do uso tradicional, os elementos ativos e a relação de sua estrutura - atividade ainda são objeto de pesquisa, e não foram completamente elucidados. Alguns resultados apontam, entre as substancias presentes, para os alcalóides, flavonóides e ácidos fenólicos, lignanos, cinamatos, terpenos e saponinas que por sua vez possuem efeitos ansiolíticos em uma ampla variedade de modelos animais de ansiedade a exemplo dos mecanismos de interação com os receptores de ácido γ-aminobutírico (GABA); receptores serotoninérgicos compatíveis com a 5-hidroxitriptamina (5-HT) 1A e 5-HT2A; sistemas noradrenérgicos e dopaminérgicos, receptores de glicina e glutamato; o receptor opióide-κ, e receptores canabinoides (CB) 1 e CB2. [9] [10]

Entre as plantas mais estudadas estão as que produzem óleos essenciais como a Lavandula angustifolia, o Citrus aurantium; [11] a Melissa officinalis;[12] diversas espécies de mulungu (Erythrina) [13] [14] [15]; as reconhecidas: valeriana (Valeriana officinalis), [16] [17] camomila (Matricaria chamomilla L.) [18] e passifloras. [19] [20] [21]

Uma oferta orientada de plantas com efeito psicoativo sedativo e/ou anti-depressivo possivelmente pode reduzir a demanda pela classe de psicotrópicos industrializados utilizados como medicação psiquiátrica. Além  de ser um importante apoio terapêutico a uma intervenção não baseada na hospitalização, pode valorizar ainda o saber popular dos “raizeiros” e vendedores de ervas e recursos ecológicos de cada comunidade.

Contudo como vimos muito ainda falta para integrarmos o conhecimento popular oriundo de diversas culturas a uma pratica clínica que não se limite à prescrição controlada indiretamente pela indústria farmacêutica e marketing comercial revestido de cientificidade, praticado por farmacêuticos e médicos contratados pela “big pharma”. Não devem ser esquecidos, estudados e aperfeiçoados os relativamente bem sucedidos programas de "Médicos de Pés Descalços" na China ( 赤脚医生 - atualmente médicos rurais / village doctors) e os "Agentes Comunitários de Saúde" do SUS - Sistema Único de Saúde no Brasil.

Referências

1- KLEINMAN, Arthur Concepts and a Model for the comparison of Medical Systems as Cultural Systems. IN: Currer,C e Stacey,M / Concepts of Health, Illness and Disease. A Comparative Perspective, Leomaington 1986

2- ESTRELA, Estrela. As contribuições da antropologia à pesquisa em saúde. in NUNES, Everaldo D. (org.) As ciências sociais em saúde na América Latina. Tendências e perspectivas. Brasília OPAS, 1985

3- ACHARYA, Deepak; SHRIVASTAVA, Anshu: Indigenous Herbal Medicines: Tribal Formulations and Traditional Herbal Practices. Aavishkar Publishers Distributor, Jaipur / India 2008, ISBN 9788179102527, p. 440. 

4 - OMS /WHO Health topics/Traditional medicine. https://www.who.int/westernpacific/health-topics/traditional-complementary-and-integrative-medicine  Acesso em agosto de 2020

5 – FRANKL, Viktor. A psicoterapia na prática. SP: Papirus, 1991

6 - AZEVEDO, Ângelo José Pimentel de, Araújo, AURIGENA, Antunes de; FERREIRA, Maria Ângela Fernandes. Consumo de ansiolíticos benzodiazepínicos: uma correlação entre dados do SNGPC e indicadores sociodemográficos nas capitais brasileiras. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2016, v. 21, n. 1 [Acessado em agosto 2020] , pp. 83-90. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-81232015211.15532014>. Epub Jan 2016. ISSN 1678-4561. https://doi.org/10.1590/1413-81232015211.15532014.

7 - SOUSA, Francisca C. F. et al . Plantas medicinais e seus constituintes bioativos: uma revisão da bioatividade e potenciais benefícios nos distúrbios da ansiedade em modelos animais. Rev. bras. farmacogn., João Pessoa , v. 18, n. 4, p. 642-654, Dec. 2008 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-695X2008000400023&lng=en&nrm=iso>. access on  Aug. 2020. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-695X2008000400023

8 - SOUSA,Rodrigo Francisco de; OLIVEIRA,Ykaro Richard; CALOU,Iana Bantim Felício. Ansiedade: aspectos gerais e tratamento com enfoque nas plantas com potencial ansiolítico. Revinter, v. 11, n. 01, p. 33-54, fev. 2018.doi: http://dx.doi.org/10.22280/revintervol11ed1.327 PDF Acessoem agosto de 2020

9 – FARZAEI, MH, et al.. A systematic review of plant-derived natural compounds for anxiety disorders. Curr Top Med Chem. 2016 Feb 4 Abstract Aces. Fev. 2016

10 - PETENATTI, Marta E. et al . Evaluation of macro and microminerals in crude drugs and infusions of five herbs widely used as sedatives. Rev. bras. farmacogn., Curitiba , v. 21, n. 6, p. 1144-1149, dez. 2011 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-695X2011000600027&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 24 fev. 2016. Epub 29-Jul-2011. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-695X2011005000129.

12 - Taiwo AE, Leite FB, Lucena GM, et al. Anxiolytic and antidepressant-like effects of Melissa officinalis (lemon balm) extract in rats: Influence of administration and gender. Indian Journal of Pharmacology. 2012;44(2):189-192. doi:10.4103/0253-7613.93846. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3326910/

12 - ALMEIDA, Emanuel Eustáquio. Caracterização farmacognóstica da espécie Erythrina falcata Benth., Fabaceae. Rev. bras. farmacogn., Curitiba , v. 20, n. 1, p. 100-105, Mar. 2010 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-695X2010000100020&lng=en&nrm=iso>. access on 24 Feb. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-695X2010000100020.

13 - SOUSA, Damião Pergentino de; HOCAYEN, Palloma de Almeida Soares; ANDRADE, Luciana Nalone; Roberto ANDREATINI; A Systematic Review of the Anxiolytic-Like Effects of Essential Oils in Animal Models. Molecules 2015, 20(10), 18620-18660; doi:10.3390/molecules201018620 http://www.mdpi.com/1420-3049/20/10/18620

14 -SERRANO, Maria Amélia Rodrigues et al . Anxiolytic-like effects of erythrinian alkaloids from erythrina suberosa. Quím. Nova, São Paulo , v. 34, n. 5, p. 808-811, 2011 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-40422011000500015&lng=en&nrm=iso>. access on 24 Feb. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-40422011000500015.

 15 - PODEROSO, J.C.M. et al . Primeiro registro no Brasil de Erythrina velutina Willd. como hospedeira de Tetranychus neocaledonicus (Acari: Tetranychidae). Rev. bras. plantas med., Botucatu , v. 12, n. 3, p. 398-401, Sept. 2010 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-05722010000300017&lng=en&nrm=iso>. access on 24 Feb. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-05722010000300017.

 16 - You J-S, Peng M, Shi J-L, et al. Evaluation of anxiolytic activity of compound Valeriana jatamansi Jones in mice. BMC Complementary and Alternative Medicine. 2012;12:223. doi:10.1186/1472-6882-12-223. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3526556/

 17 - ALEXANDRE, Rodrigo F.; BAGATINI, Fabíola; SIMOES, Cláudia M. O.. Potenciais interações entre fármacos e produtos à base de valeriana ou alho. Rev. bras. farmacogn., João Pessoa , v. 18, n. 3, p. 455-463, set. 2008 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-695X2008000300021&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 24 fev. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-695X2008000300021.

 18 - CE, Archana. An Investigation of Antianxiety Effect of Alcoholic Flower Extract of Matricaria Chamomilla l in Mice.. Asian Journal of Pharmacology and Toxicology, [S.l.], v. 1, n. 01, p. Page Numbers: 1-7, sep. 2013. ISSN 2347 - 3886. Available at: <http://www.literatipublishers.com/Journals/index.php?journal=AJP&page=article&op=view&path%5B%5D=12&path%5B%5D=10>. Date accessed: 24 Feb. 2016. doi:10.15272/ajpt.v1i01.12.

 19 - SANTOS, Kely Cristina dos et al . Sedative and anxiolytic effects of methanolic extract from the leaves of Passiflora actinia. Braz. arch. biol. technol., Curitiba , v. 49, n. 4, p. 565-573, July 2006 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-89132006000500005&lng=en&nrm=iso>. access on 24 Feb. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-89132006000500005.

 20 - SANTOS Kely Cristina dos. Atividades sedativa e ansiolítica dos extratos de Passiflora actinia Hooker, PASSIFLORACEAE. Dissertação (Mestrado) apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas do Setor de Ciências da Saúde, da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Cid Aimbiré de Moraes Santos; Maria M.Weffort de Oliveira. Curitiba, 2003 PDF Acesso. Fev. 2016

 21 - PROVENSI, Gustavo. Investigação da atividade ansiolítica de passiflora alata curtis (passifloraceae). Dissertação de Mestrado. Orientador: Rates, Stela Maris Kuze, Co-orientador: Gosmann, Grace Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Farmácia. Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas. RGS, 2007 PDF Aces, Fev. 2016


Nota:  Além das referências citadas utilizamos ainda, nossas contribuições a alguns textos da wikipédia pt,, sobretudo textos dos verbetes “Etnomedicina "Ansiolíticos" e alguns outros já bastantes desfigurados pela guerra de editores sobretudo envolvidos crença de “racionalidade científica superior”. Naquela enciclopédia colaborativa, universal e multilíngue assino como CostaPPPR. Observe-se que de modo algum desmereço o valor daquela proposição de construção coletiva que é a Wikipédia e entendo como natural da ciência e natureza humana tais conflitos que examinados no ótica de Thomas Kuhn (1922-1996) fazem parte da construção e transformação dos paradigmas das teorias na história da ciência.



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