terça-feira, 27 de setembro de 2022

Da mitologia africana jeje-nagô aos santos católicos sírio judaico-cristãos do império otomano

Esse é um texto preliminar, uma espécie de pré - print para um futuro artigo. Apesar desse blog ter sido pensado como textos de apoio ao desenvolvimento da medicina comportamental, na ótica behaviorista da teoria cognitiva comportamental, ou da medicina psicossomática, ao longo do tempo as questões culturais e históricas tem sido mais úteis tanto para minha prática clínica como psicólogo de uma secretaria de saúde pública, como para o estudante de acupuntura (medicina tradicional chinesa) e fitoterapia que sou. No mais tenho visto que hábitos e projetos de vida dependem tanto do contexto sócio-cultural e familar como de decisões individuais (facilitadas pela psicoterapia). A continuidade desse artigo pretende deter-se na dimensão simbólica da cura obtida pelo contato com a divindade, que nas tradições cristãs posteriores, se desenvolveu no exercício do sacramento da confissão (penitência), deturpado pelos católicos da "inquisição", abolido pelos neo-protestantes pós luteranos, para se obter o perdão, a dor da cura, e a enigmática associação da imagem deles aos cuidados e atenção às crianças, e a solidariedade e união entre os irmãos.


       

Alguns relatos atestam que Cosme e Damião, eram originários da Arábia (Cilícia?), mas filhos de pais cristãos. Há várias versões, mas nenhuma comprovada com fundamento histórico. Sua fama circula o mundo, diversas igrejas foram construídas para eles, sabe-se que eram dois irmãos, bons e caridosos que realizavam milagres.

A questão da prática médica deles, da cultura pré-islâmica e “cristianismo primitivo”, entretanto, não se limita à medicina dos milagres, sendo o mais conhecido milagre deles, o transplante de parte da perna logo abaixo do joelho como revelam as pinturas de Fra Angelico (1438) Master de Los Balbases (1495) e outros. Observe-se que a prática da cirurgia em Bizâncio é atestada por listas de instrumentos cirúrgicos e por outros relatos de intervenções que demostram a continuidade da prática tal como o primeiro relato de separação de gêmeos siameses no século X. (Congourdeau). Entre lendas e relatos há as questões a ser compreendidas quanto as origens e desenvolvimento, por exemplo: da geriatria clínica, fitoterapia, livros de registros de anamnese e prontuários e outras formas de arquivo de informações médicas, no contexto da medicina bizantina que sabidamente criou hospitais públicos associados à ambulatórios. (Józsa; Lapin; Miller) 

Contudo a medicina bizantina ainda traz  questões controversas. Alguns supõem poucas inovações teóricas e outros acusam o desenvolvimento do fanatismo religioso (um retrocesso da medicina hipocrática salva pela retomada pelos árabes maometanos? Mas se chegou até eles, quem foram os copistas?).  Há certo consenso quanto a prática da saúde coletiva, ética humanitária da caridade e/ou justiça social, com a invenção de hospitais públicos funcionais, no modelo onde até hoje tratamos e onde ensinamos medicina. (Congourdeau). 

Quanto a perda das conquistas galeno – hipocráticas, Marie-Hélène Congourdeau assinala que  os livros didáticos  da época e as terapia descritas às vezes nos oferece observações pessoais dos copistas, testemunham um trabalho de reflexão, atualização, mesmo refutação dos grandes autores da antiguidade.

Parece ser um consenso que Cosme e Damião viveram na Síria na época do imperador Diocleciano. O imperador Diocleciano (nascido Diócles; Salona, 22 de dezembro de 243/245 – Espalato, 3 de dezembro de 311/312) foi o imperador romano de 284 até sua abdicação em 305. (Wikipédia)

A Arábia, hoje, constitui-se da península do Sul da Ásia, entre o mar Vermelho e o golfo Pérsico, e que inclui a região desértica e diversos Estados (Emirados Árabes Unidos) a saber a Arábia Saudita, Iêmem, Omâ (Coveite,  Catar, Bareine/ Xiita)  circundando o Golfo pérsico junto com  o Irã (antiga Pérsia). 

A Síria, cuja cidade mais conhecida é Damasco situa-se entre a Jordânia, o Iraque e a Turquia. Hoje separada de Israel e conflitada região da Palestina pelo Líbano, região Jordânia, Sinai e o Egito.

Também foram chamados de "santos pobres". Muitos esforços foram feitos para demonstrar que Cosme e Damião não existiram de fato, que eram apenas a versão cristã dos filhos gêmeos pagãos de Zeus. Assim como no Brasil há um sincretismo com a divindade dos Yourubás o Orixá Ibeji, gêmeos (mabaços).

Decerto gêmeos, os primeiros gêmeos entre os iorubás - que em uma de suas histórias  nascem como abicus (aqueles que nascem para morrer e nascer de novo e morrer) na esposa de importante nobre, responsável pela grande mortandade de macacos promovida por ele, naquele tempo (como se fosse um castigo), assim revelado por Ifá.  Sempre em defesa da vida, por isso médicos ?

Há um outro mito, onde os Ibeji vencem enganam a morte, dançando, ora um, ora outro, até ela ficar cansada e ir embora, e assim debelam uma epidemia causada por ela, mito também recolhido e publicado por Reginaldo Prandi.

Os livros católicos da vida dos santos os destacam como mártires cristãos e representantes da caridade - por não aceitarem nenhum pagamento por seus serviços, e foram por isso chamados de anargiras "aqueles que não recebem prata (argentum) dinheiro". Inclusive conta-se uma história milagrosa de um camelo, que assumiu a voz humana, explicando que Damião, aceitou o modesto honorário oferecido pela viuva Paládia, curada por eles, em nome da caridade, para não humilhar a senhora que insistia na oferta. (Giovannini; Sgarbossa) 

Um mito dos Lucumis (descendentes dos Yorubás em Cuba) recolhido pelo poeta cubano Julio Moracen, que publiquei no  "estudo sobre orixás, plantas medicinais e a medicina de matriz africana entre os descendentes dos Iorubás na Bahia" conta que foi graças aos Ibejis que cessou o costume de abandonar no mato, entregue às hienas e abutres as crianças portadoras de malformações congênitas (incluindo os gêmeos unidos ou não)  e também os idosos “muito velhos".

Vale destacar esse aspecto da medicina porque a ética médica é que vem sendo abandonada com o avanço do empresariamento médico dos planos de saúde, que graças ao drible da legislação e constituição do país, para fugir da legislação e da fiscalização da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), os empresários de  seguradoras e planos conseguiram estabelecer por decreto que os planos coletivos (a modalidade que substituiu os planos individuais) que não precisam submeter seus reajustes anuais ao órgão controlador e podem ser rescindidos unilateralmente pelas operadoras quando estas bem entenderem, ou seja as leis de proteção aos idosos foi boicotada e as mensalidades dos planos aumentam com valores que chagam ao dobro do permitido pela ANS.

Somente para citar outro exemplo, além do sucateamento dos serviços públicos de saúde (com orçamento congelado por 20 anos por Michel Temer), a recente e indecorosa decisão STJ Superior Tribunal de Justiça para que os planos de saúde não precisem cobrir procedimentos fora da lista da ANS, deixando centenas, senão milhares, de doenças genéticas fora e/ou excluindo demandas clínicas que exigem procedimentos mais complexos.   Naturalmente a lista da ANS que contém toda a cobertura obrigatória inclui apenas procedimentos de baixo custo, elevada frequência ou alta lucratividade. De nada mais vale o código de ética profissional da profissão médica que inclui entre os princípios fundamentais que:

 - A medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio. (Art.IX)

 - O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivos de lucro, finalidade política ou religiosa. (Art.X)

PARA SABER MAIS, VER:

METTEN, Antoine; COSTA, Laís Silveira; GADELHA, Carlos Augusto Grabois; MALDONADO, Jose. A introdução do complexo econômico industrial da saúde na agenda de desenvolvimento: uma análise a partir do modelo de fluxos múltiplos de Kingdon. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro,v. 49, n. 4, p. 915-936, jul./ago. 2015. Disponível em https://www.scielo.br/j/rap/a/Vks4xRZKjvnfvXFCMK8pHXy/?format=pdf&lang=pt Acesso, 27/09/2022

BAHIA, Ligia. Mudanças e padrões das relações público-privado: seguros e planos de saúde no Brasil. Rio de Janeiro; Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. 1999. Tese Apresentada para a Obtenção do Título de Doutor em Saúde Pública. Orientador: Maria Lucia T. Werneck Vianna https://pesquisa.bvsalud.org/brasil/resource/pt/sus-18266 Acesso, 27/09/2022

PAIM, Jairnilson. Uma leitura sobre os 30 anos do SUS. https://outraspalavras.net/outrasaude/jairnilson-paim-uma-leitura-sobre-os-30-anos-do-sus/ e também no https://youtu.be/C3KRpdIdOGk Acesso, 27/09/2022

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REFERÊNCIAS

Congourdeau MH. La médecine byzantine. Une réévaluation nécessaire [Byzantine medicine]. Rev Prat. 2004 Oct 15;54(15):1733-7. French. PMID: 15605590. https://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-00693544/document

Costa, Paulo Pedro P. R. Um estudo sobre orixás,plantas medicinais e amedicina de matriz africanaentre os descendentes dosIorubás na Bahia. https://www.academia.edu/6388392/orix%C3%A1s_plantas_medicinais_e_a_medicina_de_matriz_africana_entre_os_descendentes_dos_Iorub%C3%A1s_na_Bahia Acesso, 27/09/2022

Eclesia - Arquidiocese Ortodoxa Grega de Buenos Aires e América do Sul. Santos Cosme e Damião, Taumaturgos e anárgiros, mártires (+284) http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/hagiografia/ss_cosme_e_damiao.html Acesso, 27/09/2022

Józsa L. A kórházi rendszer kialakulása a Bizánci Birodalomban [The establishment of the hospital-system in the Byzantine Empire]. Orvostort Kozl. 2011;57(1-4):5-24. Hungarian. PMID: 22533247. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22533247/

Giovannini, Luigi; Sgarbossa,   Mario. Um santo para cada dia. SP: Ed. Paulus, 1997 https://www.paulus.com.br/portal/santo/santos-cosme-e-damiao-martires/ Acesso, 27/09/2022

Lapin A. Warum kann ausgerechnet Byzanz als Wiege der klinischen Geriatrie betrachtet werden? [Why should Byzantium be considered as a cradle of clinical geriatrics?]. Wien Med Wochenschr. 2008;158(17-18):471-80. German. doi: 10.1007/s10354-008-0578-z. PMID: 18807237. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/18807237/

Lima, Vivaldo Costa. Cosme e Damião, o culto aos santos gêmeos no Brasil e na África. Salvador: Corrupio, 2005

Miller TS. The birth of the hospital in the Byzantine Empire. Henry E Sigerist Suppl Bull Hist Med. 1985;(10):1-288. PMID: 3902734.

Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. SP: Companhia das Letras, 2011

Xavier, Fritz. Cosme damião Médicos e Santos" coleção espiritualismo. RJ: Ediouro ...

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