quinta-feira, 18 de abril de 2024

autoanálise

 


Conheça-se a Si Mesmo, da psicanálise à psicoterapia psicodélica


Karen Horney, nasceu em 1885 em Blankenese, Hamburgo, foi uma psicanalista alemã importante, autora de obras como "A Personalidade Neurótica de Nosso Tempo" (1937) , "Novos Caminhos em Psicanálise" (1939) e o controvertido Auto análise, conheça-se a si mesmo (1942).

Depois de se formar em medicina, Horney foi treinada em psicanálise com Karl Abraham e entre 1920 e 1932 e lecionou no Instituto de Psicanálise de Berlim, enquanto assistia aos pacientes. Em 1934 ela se mudou para New York, onde começou a lecionar na New School for Social Research.

Ensinou durante vários anos no New York Psychoanalytic Institute, em 1941 foi expulsa da instituição, então decidiu criar a Association for the Progress of Psychoanalysis (Associação para o Progresso da Psicanálise).

Juntamente com Erich Fromm (1900-1980) integra o grupo identificado como psicanálise culturalista e/ou teoria sócio-psicológica. Para alguns Karen Horney foi talvez a primeira psicanalista humanista. Suas teorias são inteiramente compatíveis com as de Abraham Maslow (1908-1970).

Um dos célebres autores influenciados por ela foi Timothy Leary, (1920 - 1996), psicólogo da Universidade de Harvard (1959-1963), expulso por suas experiências com o LSD no advento de sua proibição (1963). Roemer destaca a aplicação dos modelos interpessoais desenvolvidos por Karen Horney e Timothy Leary para analisar padrões de personalidade e comportamento.

Timothy Leary recebeu um diploma de M.S. em psicologia na Washington State University em 1946 e licenciatura em psicologia clínica na Universidade da Califórnia, Berkeley, em 1950. A dissertação de seu seu Ph.D. foi intitulada "As Dimensões Sociais da Personalidade: Estrutura e Processo de Grupo. "

Depois de receber seu diploma de graduação (em agosto de 1945), Leary seguiu a carreira acadêmica, expandiu a pesquisa de Harry Stack Sullivan e Karen Horney, que buscaram compreender melhor os processos interpessoais para ajudar a diagnosticar transtornos mentais e de personalidade. A dissertação de Leary desenvolveu o modelo "circunplexo interpessoal", publicado mais tarde em seu livro, The Interpessoal Diagnosis of Personality.

Horney e Leary podem ser designados como precursores dos estudos sobre a autoanálise e a terapia assistida por psicodélicos, considerando a hipótese de que os psicodélicos facilitam o surgimento de material inconsciente carregado de emoção, o que veio a ser a proposição do também pesquisador pioneiro em psicodélicos Stanislav Grof.

O livro de Horney, "Self-analysis", 1942 (Conheça-se a si mesmo, auto análise) publicado no Brasil em 1964, está dividido em onze capítulos, distingue a auto-análise esporádica da sistemátlca (equivalente talvez ao que se realiza em sessões coletivas de meditação com psicodélicos), analisa sua praticabilldade, conveniência e limitações.

Partindo da compreensão da teoria psicanalítica e a função do analista (e fases da análise) evidencia o valor da descoberta do inconsciente (as förças propulsoras das neuroses), e fundamentando-se na metodologia clínica das histórias de vida e estudos de caso, propõe um método ou regras para avaliação sistemática das relações interpessoais e vivências a serem trabalhadas no processo de autoanálise, visando desenvolver a "capacidade de amar" (uma proposição da psicanálise freudiana), ou um melhor relacionamento consigo mesmo e com os outros, considerando o conjunto de necessidades do Self (Ego na teoria psicanalítica), análogo ao conhecido modelo da hierarquia das necessidades de Maslow.

O desenvolvimento da capacidade de autoanálise, autoconsciência e auto cuidado segundo diversos autores como Lindegaard e Gobbi et al., vem sendo estudado por diversos pesquisadores da medicina psicodélica, (inclusive pesquisadores do uso religioso da ayahuasca no Brasil (Maia et al.). O uso do termo "psicodélico", proposto pelo psiquiatra Humphrey Osmond em 1957 vem da composição das palavras gregas psique (ψυχή - alma) e dilein (δηλειν - "ou seja", revelação). A interpretação dos sonhos pode ser considerado um parâmetro para análise do conteúdo das visões.

A importância de Karen Horney portanto vem não só de sua influência sobre Timothy Leary e consequentemente na psicoterapia psicodélica, mas também por ser precursora da proposição de autoanálise, (em 1942) desafiando as proposições ortodoxas da psicanálise e nos remetendo ao paradoxo da terapia psicanlítica que de certo modo fundamentar-se na autoanálise de Sigmund Freud (1856-1939).

Saigh assinala que, embora Freud tenha feito ele mesmo sua análise, ele tinha um interlocutor, o médico, seu amigo e correspondente Wilhelm Fliess, (1858-1928). Observa que em duas das muitas cartas que escreveu a Fliess, mostrou-se ambivalente sobre a crença na eficácia da auto-análise que empreendeu, chegando a afirmar ..."uma genuína auto-análise é impossível, do contrário não existiria a neurose". Saigh, 2007.

Por outro lado um estudo de seguimento realizado em Estocolmo, comparando a psicanálise com psicoterapia de orientação psicanalítica de longo prazo, concluíu em um dos resultados que os pacientes de psicanálise continuaram a melhorar após o término em um grau mais elevado do que os pacientes de psicoterapia de longo prazo. Possivelmente em função do desenvolvimento da capacidade de autossuficiência descritas por ex-analisandos, mas não por ex-pacientes de psicoterapia. Sendo que apenas a auto-análise foi significativamente correlacionada com a melhoria pós-rescisão em ambos os tratamentos. (Falkenström, et al. 2007).

REFERÊNCIAS

Karen Horney (1885-1952)
International Karen Horney Society
http://plaza.ufl.edu/bjparis/ikhs/horney/fadiman/01_intro.html

Karen Horney. Conheça-se a si mesmo (auto análise). RJ: Civilização Brasileira, 1964

Aydin, Serdar; Ceylan, Hasan Huseyin; Aydin, Erhan (2014). A Research on Reference Behavior Trend According to Horney's Personality Types. Procedia - Social and Behavioral Sciences, 148(), 680–685. doi:10.1016/j.sbspro.2014.07.014
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1877042814039184
Falkenström, F., Grant, J., Broberg, J., & Sandell, R. (2007). Self-Analysis and Post-Termination Improvement After Psychoanalysis and Long-Term Psychotherapy. Journal of the American Psychoanalytic Association, 55(2), 629–674. doi:10.1177/00030651070550020401
url to share this paper: https://sci-hub.yncjkj.com/10.1177/00030651070550020401 Sci-Hub is a project

Gobbi G, Inserra A, Greenway KT, Lifshitz M, Kirmayer LJ. Psychedelic medicine at a crossroads: Advancing an integrative approach to research and practice. Transcult Psychiatry. 2022 Oct;59(5):718-724. doi: 10.1177/13634615221119388. Epub 2022 Oct 19. PMID: 36263521; PMCID: PMC9663823. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9663823/

Lindegaard T. Do Psychedelics Facilitate Emergence of Unconscious Psychological Processes? Psychodyn Psychiatry. 2023 Sep;51(3):270-286. doi:10.1521/pdps.2023.51.3.270. PMID: 37712665.
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37712665/

Maia, Lucas Oliveira; Dias, Camila; Valêncio, Luis Felipe; Tófoli, Luís Fernando. orgs.). Visões multidisciplinares da Ayahuasca. SP: Unicamp, 2024

Roemer WW. Leary's circle matrix: a comprehensive model for the statistical measurement of Horney's clinical concepts. Am J Psychoanal. 1986 Fall;46(3):249-62. doi: 10.1007/BF01250973. PMID: 2430473. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/2430473/

Roemer WW. An application of the interpersonal models developed by Karen Horney and Timothy Leary to type A-B behavior patterns. Am J Psychoanal. 1987 Summer;47(2):116-30. doi: 10.1007/BF01253025. PMID: 3618840. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/3618840/
Saigh, Yeda Alcide. A auto-análise 150 anos depois de Freud. Psyche (Sao Paulo), São Paulo , v. 11, n. 20, p. 117-128, jun. 2007 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382007000100008&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 23 ago. 2020


VER TAMBÉM

MARUCCO, Norberto C.. A análise do analista: análise didática, reanálise, auto-análise. J. psicanal., São Paulo , v. 41, n. 74, p. 187-196, jun. 2008 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352008000100013&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 23 ago. 2020.

ANZIEU,  Didier A auto-análise de Freud e a descoberto da psicanálise – 2 volumes. Pt: Editora Edições 70, 1990

PIERRE BOURDIEU
Esboço de auto-análise.

Almeida, B. G. M. de .. (2006). Os limites da auto-análise. Revista De Sociologia E Política, (26), 125–129. https://doi.org/10.1590/S0104-44782006000100009
https://www.scielo.br/j/rsocp/a/gNk7JgYTLLSQcS8DPtBjHhm/

Rosa, A. R.. (2007). Esboço de auto-análise. Revista De Administração Contemporânea, 11(2), 239–241. https://doi.org/10.1590/S1415-65552007000200014
https://www.scielo.br/j/rac/a/XtpqxwHxvwGfnty3Ht5cqfP/

ILUSTRAÇÃO

Detalhe de mandala de C.G. Jung no Livro Vermelho

O aforismo do grego antigo "conhece a ti mesmo" (grego: γνῶθι σεαυτόν, transliterado: gnōthi seauton; também ... σαυτόν ... sauton com o ε contraído), é uma das máximas délficas e foi inscrita no pronau (pátio) do Templo de Apolo em Delfos de acordo com o escritor Pausânias (10.24.1). Em latim a frase, "conhece a ti mesmo", é geralmente dada como Nosce te ipsum

Ruínas do Templo de Delfos/ wikimedia commons

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sábado, 2 de março de 2024

O “princípio do Nirvana”, anotações

 


Mircea Eliade assinala que a essência da espiritualidade hindu se exprime através do mútuo relacionamento entre quatro conceitos fundamentais: Carma, Maya, Nirvana e Ioga.


Desde o período pós-védico, o pensamento hindu busca compreender basicamente o seguinte:

1. A lei causal universal (Carma), que condena o ser humano a renascer indefinidamente;

2. O processo de ‘ilusão cósmica’ (Maya), que sustenta o universo, possibilitando, em razão da nossa ignorância metafísica, a eternização do processo reencarnatório;

3. A realidade absoluta (Nirvana, Átman, Brahman, o Incondicionado etc.), que transcende a ilusão cósmica e a experiência humana condicionada pela lei da reencarnação;

4. Os diversos meios para alcançar o Absoluto (Ioga) e conquistar a libertação.

Souza analisando a história Sidarta Gautama (Buda) contada por Herman Hesse e analisada na ótica da teoria jungniana do processo de individuação e contextualizada com base nas perspectivas histórico-etnológicas de Mircea Eliade e Joseph Campbell, nos apresenta o conceito de Nirvana obtido através da Ioga,

Na concepção jungniana Sidarta busca separar-se do eu, procura desindividualizar-se. Tendo em vista o problema da identidade, implicado na possibilidade de desindividualização, é importante considerar a posição de Jung quanto a essa questão.


Souza, L. E. da S. e ., & Delgado, V. T.. (2008). O percurso de Sidarta e o problema da identidade, um estudo transdisciplinar do romance de Hermann Hesse. Psicologia USP, 19(2), 213–234. https://doi.org/10.1590/S0103-65642008000200007

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Jung parte do princípio de que existem entre o homem ocidental e o oriental diferenças psicológicas e espirituais muito significativas é o que buscamos entrever, com essas anotações, apresentando excertos da “apropriação” que a psicanálise (e no caso a psicologia analítica) fez do conceito de “nirvana” que atravessa os continentes da Índia, para a China e Japão para uma desejada psicologia científica, que ainda hoje é um controverso projeto.

Vale também rever as concepções de qualidade e quantidade da energia psíquica / energia vital, que como veremos foi, e é, uma conquista desejada inclusive para sua utilização na acupuntura no âmbito da psicologia ou neuropsicologia das “doenças mentais”...

Uma questão que lamentavelmente saiu do âmbito de discussões acadêmicas para questões judiciais, de quem pode ou não pode praticar acupuntura e entender a medicina tradicional chinesa, segundo o Colégio Médico de Acupuntura no Brasil que entrou com processos judiciais contra a prática da acupuntura nas profissões paramédicas incluindo a psicologia.

 Voltando à qualidade de estudos acadêmicos, numa cuidadosa revisão de 1.130 artigos e 85 textos completos sobre os diversos modelos teóricos da consciência que se remetem a pelo menos 29 teorias da consciência, Sattin et al. assinala que o conceito de 'consciência' pode ser encontrado em documentos históricos desde a antiguidade, e pode ser comprovado em diversas tradições e culturas com algumas perspectivas que, embora a linguagem da expressão tenha se tornado diferente, parecem ser conceitos que evoluíram ao longo da história e cita  a obra de Fritjof Capra que nos descreveu como alguns conceitos antigos orientais sobre uma consciência universal são consistentes com a física moderna, como  uma substância que vem de uma “consciência cósmica” (esta foi a definição de consciência usada) da qual toda a matéria é feita.

Capra, Fritjof. The Tao of Physics. Shambhala Publications; Boston, MA, USA: 1974. In:

Sattin D, Magnani FG, Bartesaghi L, Caputo M, Fittipaldo AV, Cacciatore M, Picozzi M, Leonardi M. Theoretical Models of Consciousness: A Scoping Review. Brain Sci. 2021 Apr 24;11(5):535. doi: 10.3390/brainsci11050535. PMID: 33923218; PMCID: PMC8146510. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8146510/

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 Marcelo Gleiser em artigo especial para a Folha SP - Ciência e espiritualidade (18 de Julho de 1999) comenta a proliferação de seitas da "Nova Era", de várias superstições e de pregadores da "verdade", proliferando o crescimento do desprezo pela ciência e pelo que ela tem a dizer sobre o mundo. Destaca os livros de divulgação científica tiveram sucesso por revelar uma conexão entre ciência e espiritualidade, como "O Tao da Física", de Fritjof Capra, mas nos alerta para consideração de que a ciência esteja simplesmente redescobrindo "verdades" descobertas através da meditação ou de uma conexão mística com o mundo, como nas religiões orientais ressaltando que o  fundamental é saber discernir os limites entre a ciência e a espiritualidade, suas diferentes missões e o simples fato de elas serem necessárias para a nossa existência.

Observe-se que tal cuidado, inclusive já está na proposição de Capra quando nos afirma que:

...uma experiência mística, portanto, à semelhança de um moderno experimento levado a cabo pela Física, não é um fato único. E, por outro lado, não se afigura menos sofisticada que este, embora sua sofisticação seja de um tipo inteiramente diverso. A complexidade e eficiência do aparato técnico de que dispõe o físico é igualada, quando não superada, pelo aparato de que dispõe a consciência do místico - tanto em termos físicos quanto espirituais - quando em meditação profunda.

Todo aquele que quer repetir um experimento na moderna Física subatômica tem de passar por inúmeros anos de treinamento. Somente então estará capacitado a indagar da natureza uma determinada questão, utilizando-se do experimento, e a possuir as condições que o habilitem a compreender a resposta. De idêntica forma, uma experiência mística profunda demanda, via de regra, inúmeros anos de treinamento sob a orientação de um mestre experiente e, da mesma forma que no treinamento científico, o tempo dedicado a essa tarefa não garante, por si só, a obtenção do sucesso. Se o aluno consegue ser bem-sucedido, estará em condições de repetir o experimento '". A possibilidade de repetir a experiência constitui, na verdade, uma característica essencial para o treinamento místico: nela reside, de fato, o objetivo básico da instrução espiritual dos místicos. Capra oc. (tradução brasileira Cultrix) p.36

Gleiser, Marcelo. Ciência e espiritualidade. Folha SP 18 de Julho de 1999 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe18079903.htm

 Capra Fritjof. O tao da física. SP: Cultrix, 1995

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Para Carl Gustav Jung (1875 - 1961) integrante da sociedade internacional de psicanálise até 1912

... todo fenômeno requer ao mesmo tempo um ponto de vista mecanicista-causal e um ponto de vista energético-final. É somente a oportunidade, quer dizer, a possibilidade de êxito que decide se a preferência deve recair sobre este ou aquele ponto de vista. Se se considera o aspecto qualitativo do acontecimento, é o ponto de vista energético que é postergado, porque nada tem a ver com as substâncias, mas unicamente com suas relações quantitativas de movimento.

Já se discutiu muito a questão se o acontecimento psíquico pode ser tomado também sob o ponto de vista energético.A priori não há razão para que isto não seja possível, pois não há motivos para excluir o acontecimento psíquico do campo dos dados objetivos da experiência. Como bem o mostra o exemplo de Wundt, é possível duvidar, de boa-fé, que o ponto de vista energético possa ser aplicado com relação aos fenômenos psíquicos, e, em caso afirmativo, que a psique possa ser considerada como um sistema relativamente fechado.

No que respeita ao primeiro ponto, devo concordar com a opinião de VON GROT, um dos primeiros a sustentar a teoria energética da psique, quando afirma: "O conceito de energia psíquica é tão legítimo em ciências quanto o de energia física, e a energia psíquica tem também suas medidas quantitativas e formas diferentes, como a energia física".

No que se refere ao segundo ponto, eu me distingo dos que estudaram esta questão até o presente, no sentido de que quase não me tenho preocupado em enquadrar os processos da energia psíquica no sistema físico. Se não o faço, não é porque possuo, quando muito, vagas suposições a este propósito, mas porque não encontro pontos de apoio reais.Embora esteja convencido de que a energia psíquica se acha de algum modo estreitamente ligada ao processo físico, ainda preciso de experiências e de conhecimentos bastante diversos para falar, com competência, a respeito desta vinculação.

V. GROT, Die Bregriffe der Seele und derpsychischen Energie in der Psychologie, p. 290.

WUNDT W. Grundzüge der physiologischen Psychologie, III, p. 692s.

JUNG, Carl Gustav A energia psíquica. RJ: Petrópolis: Vozes, 2002

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HOMEOSTASE, ENTROPIA, NIRVANA.

Perfeita essa colocação de C. G.  Jung, contudo, o mérito de tal distinção entre os aspectos qualitativos da energia psiquica (libido ou eros, como veremos) cabe a Sigmund Freud desde sua proposição inicial de "Projeto de uma Psicologia Científica" 1895 (1950) e elaboração da concepção de "aparelho psíquico” nos apresentada no livro "A interpretação dos sonhos" (1900) por analogia aos aparelhos ópticos que nos permitem superar os limites do olho humano. (Talvez hoje utilizasse a noção de "software" pela capacidade de governar maquinas elétricas análogas ao sistema nervoso animal).

De qualquer sorte, Freud (1920), no artigo Mais além do princípio do prazer decerto já conhecia as noções de constância “milieu interne” ou “intérieur” – de Claude Bernard (1878) e/ou de homeostasia desenvolvida por seu contemporâneo Walter B. Cannon (1871-1945).

A ideia de homeostase, de uma busca de equilíbrio interno, uma vez que ele relacionou o princípio do prazer, de nirvana, de constância, e entropia, elementos do campo científico de sua época, a seu próprio modo,

Para Prata, para investigar esse tema, Freud (1920) discute, como questão inicial, a relação do princípio da constância com o princípio do prazer citando ainda a tendência à estabilidade desenvolvida por Fechner, que relaciona a estabilidade ao prazer e a instabilidade ao desprazer, fala que o aparelho psíquico tenta manter constantes ou tão baixas quanto possível suas excitações internas. Concepção corroborada, segundo ela por Laplanche e Pontalis (1986)

Que colocam a questão de saber se aquilo que Freud (1920) chama de princípio de prazer corresponde à manutenção da constância do nível energético ou a uma redução radical das tensões ao nível mais baixo.

Observe-se que o próprio Freud utilizou o conceito de Entropia, grau de desordem, num sistema físico, reduzindo a energia a condição de indisponível para a efetuação do trabalho. Pelo menos duas vezes (1918, 1937)

Segundo ele considerando a conversação da energia psíquica, não menos do que a de energia física, devemos fazer uso do conceito de entropia, que se opõe à anulação do que já ocorrera.

Freud Sigmund. Análise terminável e interminável (1937)

Freud Sigmund. História de uma neurose infantil (1918 [1914])

Prata, Maria Regina Pulsão de morte: mortificação ou combate?. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica [online]. 2000, v. 3, n. 2 [Acessado 5 Outubro 2021] , pp. 115-135. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1516-14982000000200007>. Epub 27 Fev 2009. ISSN 1809-4414. https://www.scielo.br/j/agora/a/BctFXkHX4p6CvBD3Vg7PwWS/?lang=pt#

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Voltando ao conceito de NIRVANA, segue excertos de sua obra sobre:


Sigmund Freud (1856 -1939)
ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER (1920)

...retornemos aos impulsos sexuais conservadores da vida. Da pesquisa com protistas já ficamos sabendo que a fusão de dois indivíduos sem divisão posterior, a cópula, atua sobre ambos, que então logo se separam, de maneira fortalecedora e rejuvenescedora. (Ver Lipschütz, acima.) Nas gerações seguintes, eles não apresentam quaisquer fenômenos degenerativos e parecem capacitados a resistir por mais tempo às nocividades de seu próprio metabolismo. Acredito que essa observação pode ser tomada como exemplar também para o efeito da união sexual. Porém, de que maneira a fusão de duas células pouco diferentes produz semelhante renovação da vida? O experimento que substitui a cópula entre os protozoários pela influência de estímulos químicos ou mesmo mecânicos certamente permite dar uma resposta segura: isso acontece mediante o acréscimo de novas grandezas de estímulo. No entanto, isso se harmoniza bem com a hipótese de que o processo vital do indivíduo leva, por razões internas, ao nivelamento de tensões químicas, isto é, à morte, enquanto a união com uma substância viva individualmente diferente aumenta essas tensões, introduz novas diferenças vitais, por assim dizer, que então precisam ser vividas até o esgotamento. Naturalmente, deve haver uma ou mais condições ótimas para essa diferença. O fato de termos reconhecido que a tendência dominante da vida psíquica, talvez da vida nervosa em geral, é a aspiração por reduzir, manter constante, eliminar a tensão interna de estímulo (o princípio de nirvana, segundo uma expressão de Barbara Low), tal como essa aspiração se expressa no princípio de prazer – esse fato, dizíamos, é um de nossos mais fortes motivos para acreditar na existência de impulsos de morte....

Freud. Sigmund. Além do princípio do prazer, 1920

Lipschütz, A. Warum wir sterben [Por que morremos]. Stuttgart, 1914. (104-105, 118)

Low, Barbara Psycho-Analysis — "A brief account of the Freudian theory” em 1920,

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Barbara Low (1877-1955)

Em seu Livro Low..no terceiro capítulo, enquanto tenta apresentar a ideia do recalcamento, faz breves descrições do princípio de prazer e de realidade. Explicando o princípio de prazer, Low se vê diante da tarefa de demonstrar de que modo sensações de dor e desprazer obedeceriam a essa tendência. Após afirmar que dor e desprazer podem ser utilizados para intensificar as sensações de prazer e que de fato isso é feito desde a infância, propõe:

É possível que mais profundamente que o princípio de prazer jaz o princípio de Nirvana, como se poderia chamá-lo – o desejo da criatura recém-nascida de retornar ao estágio de onipotência, no qual não há desejos não satisfeitos, no qual ele existia dentro do útero da mãe. ...

Outra referência possível, segundo Silva:

Se tentarmos agora localizar na filosofia de Schopenhauer algo que possa ter influenciado Low em suas afirmações sobre o princípio de Nirvana, encontraremos indícios em “O Mundo como Vontade e como Representação”. Na parte final dessa obra, Schopenhauer tenta refletir sobre os efeitos de seu pensamento na prática, caminhando para uma proposição (ou talvez uma problematização) ética.


Já que não é possível (e nem mesmo necessário, nesse caso) nos determos nas minúcias de seu raciocínio, vemos que ele indica haver uma semelhança entre o que chama de negação da vontade e o nirvana, “um estado no qual não existem quatro coisas, a saber, nascimento, velhice, doença e morte”.

Schopenhauer prossegue analisando as noções de bom, mau, justiça e vê como problema na relação entre os homens a afirmação da vontade, que causaria um bem transitório e relativo. Em oposição a isso afirma que o “bom absoluto” implicaria na “satisfação final da vontade além da qual nenhum novo querer apareceria”, coisa que só é possível ao negar a vontade. A total supressão da vontade seria o único caminho para livrar o homem do sofrimento que enfrenta quando está submetido a ela. Essa supressão parece ocorrer, de acordo com ele, na vida de santos e sábios budistas, por exemplo.

Ou ainda

.. ficamos com a impressão de que Low, apesar de não ter deixado explícito em seu texto, se serve das ideias de Ferenczi (1913) [“O Desenvolvimento do Sentido de Realidade e seus Estágios”]. Uma vez que seu livro tinha a intenção de ser mais acessível a leigos, ela pode ter optado por não incluir muitas notas ou citações, o que justificaria em parte a omissão. Sua descrição do princípio de Nirvana, porém, é feita em termos tão parecidos com os que Ferenczi havia utilizado sete anos antes que é muito provável que tenha sido ele uma das principais fontes dessa ideia.

Silva observa ainda que ... ao se apropriar do princípio de Nirvana de Low, Freud o apresenta sob um novo prisma. A descrição de Low tem como foco a noção de um desejo de retornar ao estado de onipotência da vida dentro do útero.

Para Freud, o essencial parece ser o mecanismo econômico desse desejo, traduzido como tendência à extinção das excitações.

Aparentemente, as duas versões do princípio de Nirvana não se contradizem, e sim se complementam.

... Para Freud, o foco parece ser o rebaixamento ou eliminação da tensão, que, na formulação de Low, aparece como estado em que não há desejos não realizados. ...

Silva , Marcus Vinicius Neto. Barbara Low e o princípio de Nirvana. Revista Lacuna 7 de agosto de 2019 artigo, n. -7 ISSN 2447-2663 https://revistalacuna.com/2019/08/07/n-7-7/

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Voltando a Freud:

Sigmund Freud (1856 -1939)
O PROBLEMA ECONÔMICO DO MASOQUISMO (1924)

Será lembrado que assumimos a opinião de que o princípio governante de todos os processos mentais constitui um caso especial da ‘tendência no sentido da estabilidade’, de Fechner, e, por conseguinte, atribuímos ao aparelho psíquico o propósito de reduzir a nada ou, pelo menos, de manter tão baixas quanto possível as somas de excitação que fluem sobre ele. Barbara Low [1920, 73] sugeriu o nome de ‘princípio de Nirvana’ para essa suposta tendência, e nós aceitamos o termo. Sem hesitação, porém, temos identificado o princípio de prazer-desprazer com esse princípio de Nirvana. Todo desprazer deve assim coincidir com uma elevação e todo prazer com um rebaixamento da tensão mental devida ao estímulo; o princípio de Nirvana (e o princípio de prazer, que lhe é supostamente idêntico) estaria inteiramente a serviço dos instintos de morte, cujo objetivo é conduzir a inquietação da vida para a estabilidade do estado inorgânico, e teria a função de fornecer advertências contra as exigências dos instintos de vida - a libido - que tentam perturbar o curso pretendido da vida. Tal visão, porém, não pode ser correta. Parece que na série de sensações de tensão temos um sentido imediato do aumento e diminuição das quantidades de estímulo, e não se pode duvidar que há tensões prazerosas e relaxamentos desprazerosos de tensão. O estado de excitação sexual constitui o exemplo mais notável de um aumento prazeroso de estímulo desse tipo, mas certamente não o único. ...

... Seja como for, temos de perceber que o princípio de Nirvana, pertencendo, como pertence, ao instinto de morte, experimentou nos organismos vivos uma modificação através da qual se tornou o princípio de prazer, e doravante evitaremos encarar os dois princípios como um só. Se nos preocupamos em acompanhar essa linha de pensamento, não é difícil imaginar a força que foi a fonte da modificação. Ela só pode ser o instinto de vida, a libido, que assim, lado a lado com o instinto de morte, apoderou-se de uma cota na regulação dos processos da vida. Assim, obtemos um conjunto de vinculações pequenos, mas interessantes. O princípio de Nirvana expressa a tendência do instinto de morte; o princípio de prazer representa as exigências da libido, e a modificação do último princípio, o princípio de realidade, representa a influência do mundo externo.

Gustav Theodor Fechner (1801 -1887)

o ‘princípio de constância’. A lei de Fechner posteriormente conhecida como lei de Weber-Fechner pode ser enunciada como: "a resposta a qualquer estímulo é proporcional ao logaritmo da intensidade do estímulo". Esta lei aplica-se aos 5 sentidos, mas as suas implicações são mais bem entendidas quando se refere aos estímulos provocados pela luz e pelo som. Citado no “Projeto para uma psicologia científica” (1950 [1895])

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ESBOÇO DE PSICANÁLISE (1940 [1938])

O id, excluído do mundo externo, possui seu próprio mundo de percepção. Ele detecta com extraordinária agudez certas modificações em seu interior, especialmente oscilações na tensão de suas necessidades instintivas, e essas modificações tornam-se conscientes como sensações na série prazer-desprazer. É difícil dizer, com efeito, por que meios e com a ajuda de que órgãos sensórios terminais essas percepções ocorrem. Mas é fato estabelecido que as autopercepções - sensações cenestésicas e sensações de prazer-desprazer - governam a passagem de acontecimentos no id com força despótica. O id obedece ao inexorável princípio de prazer. Mas não o id sozinho. Parece que também a atividade dos outros agentes psíquicos só é capaz de modificar o princípio de prazer, mas não de anulá-lo, e permanece sendo questão da mais alta importância teórica, questão que ainda não foi respondida, quando e como é possível este princípio de prazer ser superado. A consideração de que o princípio de prazer exige uma redução, no fundo a extinção, talvez, das tensões das necessidades instintivas (isto é, o Nirvana) leva às relações ainda não avaliadas entre o princípio de prazer e as duas forças primevas, Eros e o instinto de morte.

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Assim, concluindo segundo os Dicionários de Psicanálise

Princípio de Nirvana

al. Nirwanaprinzip; esp. principio de Nirvana; fr. principe de Nirvana; ing. Nirvana principle

Termo derivado do budismo e da filosofia de Arthur Schopenhauer (1788-1860), proposto pela psicanalista inglesa Barbara Low (1877-1955) e posteriormente retomado por Sigmund Freud, em Mais além do princípio de prazer, para designar uma tendência do aparelho psíquico a aniquilar qualquer excitação e qualquer desejo.

Barbara Low, Psycho-Analysis. A Brief Account of the Freudian Theory, Londres, Allen & Unwin, 1920.

Laplanche, Pontalis em seu dicionário sobre este “princípio do Nirvana”, destacam a relação desta concepção com o “princípio de inércia (neurônica) ” ou “princípio de funcionamento do sistema neurônico” postulado por Freud no Projeto para uma psicologia científica (Entwurf einer Psychologie, 1895):

...os neurônios tendem a evacuar completamente as quantidades de energia que recebem... É no Projeto para uma psicologia científica que Freud enuncia um princípio de inércia como princípio de funcionamento daquilo a que chama então sistema neurônico. Nos textos metapsicológicos posteriores não retomará mais esta expressão. A noção pertence ao período de elaboração da concepção freudiana do aparelho psíquico. Sabe-se que Freud descreve no Projeto um sistema de neurônios apelando para duas noções fundamentais: a de neurônio (qualidade?) e de quantidade

Roudinesco, Elisabeth, 1944. Dicionário de psicanálise /Elisabeth Roudinesco, Michel Plon; RJ: Zahar, 1998

Laplanche, Jean. Vocabulário de psicanálise. Laplanche e Pontalis. SP: Martins Fontes, 2001

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Para  Rapaport  na sua análise da estrutura da teoria psicanalítica  o  Modelo da Entropia (ou Econômico) pode vir a tornar-se um fator unificador da teoria psicanalítica, considerando que esta não necessita de dados adicionais para desenvolver-se; ao contrário, a quantidade de dados já é embaraçadoramente ampla. Também não precisa de dados que – embora passíveis de tratamento estatístico - não passam de informes clínicos disfarçados e a rigor, os próprios informes clínicos são melhores do que os dados desse gênero.

Critica as tentativas de se obter nas experimentações situações análogas às da clínica, mas destacando a demanda e a comparabilidade dos recursos terapêuticos que privilegiam a concepção de autonomia e autonomia relativa aposta nos métodos utilizados na Universidade de McGill, os estudos Bethesda a respeito da privação sensorial e, métodos hipnóticos, como apropriados. A teoria necessita de dados obtidos com a ajuda desses (e de outros) métodos relevantes (eg., uso de drogas como a mescalina se é que este uso não implique na perda de autonomia.

Em suas palavras a concepção/ modelo de Entropia proposto (Freud, 1900 – “Interpretação dos sonhos) - implícito na direção atribuída ao percurso da excitação no modelo topográfico – retrata a seqüência crucial, topograficamente incompleta, do comportamento do lactente: inquietação → sugar o seio → declínio da inquietação. Esta seqüência, que torna o comportamento referente dos processos de redução de tensões, é considerado o modelo básico de todo o comportamento motivado; e, em consonância com o postulado do determinismo, diz respeito aos comportamentos com motivações óbvias assim como aos comportamentos aparentemente acidentais.

Pode ser modificado - como veremos - para explicar também os processos de manutenção da tensão e de aumento da tensão. O mérito deste modelo está em que ele coordena uma série ampla de fenômenos, e serve, em particular, como fundamento para os conceitos do princípio do prazer e da satisfação de desejo; serve, ainda, em geral, para fundamentar o ponto de vista econômico que abrange aqueles conceitos. O modelo desempenha papel importante na transformação do ponto de vista topográfico em estrutural; contém, ainda, a essência dos pontos de vista dinâmico e adaptativo. Uma vez que este modelo já implica algum dos outros, apresentaremos, adiante, um esboço de uma tentativa prévia (Rapaport, 1951b) no sentido de desenvolvê-lo para transformá-lo num modelo psicológico unificado da teoria psicanalítica.

Rapaport, David. A estrutura da teoria psicanalítica, uma tentativa de sistematização. SP: Ed. Perspectiva...p.10 e p.123

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Da ilustração

निर्वाण
Nirvana , (sânscrito: "extinguir-se" no pensamento religioso indiano, o objetivo supremo de certas disciplinas de meditação . Embora ocorra nas literaturas de várias tradições indianas antigas, o termo sânscrito nirvana é mais comumente associado ao Budismo , no qual é a designação mais antiga e comum para o objetivo do caminho budista. É usado para se referir à extinção do desejo, do ódio e da ignorância e, em última análise, do sofrimento e do renascimento. Literalmente, significa “apagar” ou “extinguir-se”, como quando uma chama se apaga ou um fogo se apaga. ...

Buda ensinou que a existência humana é caracterizada por várias formas de sofrimento (nascimento, envelhecimento, doença e morte), que são vivenciadas ao longo de muitas vidas no ciclo de renascimento chamado samsara (literalmente “errante”). Buscando um estado além do sofrimento, ele determinou que sua causa – ações negativas e as emoções negativas que as motivam – deveria ser destruída. Se essas causas pudessem ser erradicadas , não teriam efeito, resultando na cessação do sofrimento. Essa cessação foi o nirvana. O Nirvana não era visto, portanto, como um lugar, mas como um estado de ausência, nomeadamente a ausência de sofrimento.

Donald S. López. Nirvana (religion)
https://www.britannica.com/topic/nirvana-religion
Samsara (saṃsāracakka)

'Roda de renascimentos' (saṃsāracakka). A ignorância (avijjā) é o seu centro (ou nave) porque é a sua raiz. O envelhecimento e a morte (jarā-maraṇa) é o seu aro (ou fel) porque o encerra. Os dez elos restantes [da Origem Dependente] são seus raios [ou seja, saṅkhāra até o processo de vir a ser, bhava]

https://pt.dreamstime.com/illustration/dharmachakra.html
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Nièpán / Nirvana

niè / escurecer, enegrecer

pán / bandeja, disco de madeira


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terça-feira, 18 de outubro de 2022

Um texto de Sigmund Freud de 1896


A hereditariedade e a etiologia das neuroses

 


Esse conjunto de anotações da obra de Sigmund Freud sobre Hereditariedade visa rever a sua posição de que “...a psiquiatria, ao eleger a hereditariedade, como causa dos transtornos mentais, nos remete a uma etiologia geral e remota, em vez de indicar, primeiro, as causas mais especiais e próximas, utilizando os métodos técnicos da psicanálise acerca do conteúdo do delírio” (Freud - Teoria geral das neuroses (1917)

A psiquiatria [portanto, que] ...não emprega os métodos técnicos da psicanálise; [apenas] toca superficialmente qualquer inferência acerca do conteúdo [psicossocial] do delírio, e, ao apontar para a hereditariedade, dá-nos uma etiologia geral e remota [ ainda hoje na era pós "projeto genoma", 2003 ] em vez de indicar, primeiro, as causas mais especiais e próximas, cujo acesso a psicanálise nos proporciona. (Freud, 1896)

Essa releitura dos antigos textos de Freud, de certo modo, identifica e se constitui como uma introdução à neuropsicanálise, pois parte da leitura das publicações pré-psicanalíticas e contribuições de Freud à neurologia/ neuropsiquiatria. 

Dado a importância que ele dá aos fatores epigenéticos, de certo modo, suas contribuições aproximam-se das modernas descobertas da genética molecular, com identificação de genes e genética clínica, advindas das tradicionais reconstruções de antecedentes familiares e populacionais dos portadores de transtornos mentais. Identificados na anamnese para realização de heredogramas ou árvores genealógicas. 

Epigenética é o estudo de características do genitor para a prole que não resultam de uma mutação do DNA...o processo que leva à expressão de um alelo que é herdado de um genitor e à inatividade de sua contraparte do outro genitor é um fenômeno epigenético chamado imprinting gnômico... (Pasternak, 2015)   

O presente texto visa valorizar também as múltiplas acepções e contribuições de Freud para genética evolutiva dos primeiros homens e a psicogenética, ou seja a forma como identificou estruturação, gênese ou regressão do sujeito e sua constituição psicofisiológica.

A Genética Evolutiva é o vasto campo de estudos que resultaram da integração da genética e da teoria da evolução Darwiniana. Este campo busca dar explicação para a evolução em termos de mudanças nas frequências gênicas e genotípicas nas populações. (Santos; Santos, 2014) Freud, compartilhava [a teoria] de origem única (fundamentada na Eva mitocondrial), ou seja, aparentemente não apoiaria a teoria da evolução multirregional ou teoria policêntrica (ela ainda não havia sido formulada).

Sem entrar no mérito das diferenças entre hominídeos, Freud, aderiu a hipótese de Charles Darwin (1809 - 1882) sobre o estado social dos homens primitivos, que tal como os símios superiores, o também o homem vivia originalmente em grupos ou hordas relativamente pequenos e deduziu dos hábitos de ambos a gênese de nossos sistemas de parentesco a partir da proibição do incesto, nessa regra, através da qual, segundo Lévi-Strauss (1976) a natureza ultrapassa a si mesma formando um estrutura ou ordem de novo tipo integrado essa organização da vida animal à vida psíquica.  

Em psicologia clínica, heredogramas são, modernamente, melhor descritos com os recursos da antropologia e análise psicossocial da biografia de um sujeito; e atualmente possivelmente complementados por exames de identificação de padrões metabólicos e genes já identificados como por exemplo: variantes do gene MAO A ligada ao comportamento antissocial; variante do gene 5HTT (transportador de serotonina) ligado à depressão e variantes do gene COMT ligada à esquizofrenia que vem orientando e interagindo com a psicofarmacologia na identificação de endofenótipos e biomarcadores para um tratamento personalizado, considerando inclusive a genética dos efeitos colaterais induzidos por antipsicóticos, antidepressivos, etc. (Thapar,et al. 2008; Gerretsen et. al. 2009)

A Neuropsicanálise é um movimento dentro da neurociência e da psicanálise para combinar os conhecimentos de ambas as disciplinas para uma melhor compreensão da mente e do cérebro (Nèmeth, 2011). Michael Harvey da Sociedade internacional de Psicanálise (International Neuropsychoanalysis Society) refere-se a neuropsicanálise como um campo emergente de estudos que neste momento está envolvida na exploração interdisciplinar da associação entre a neurologia, neuropsicologia, neuroanatomia, psicanálise tendo como proposição o método clínico-anatômico observacional utilizado por Freud quando trabalhava como neurologista e a neuropsicologia dinâmica notabilizada por Alexander Luria (1902 - 1977) por volta de 1939 cujos princípios se aproximam aos da psicanálise por aceitar que as funções da fisiologia cerebral ocorrem na interação dinâmica de diversas áreas espalhadas pelo cérebro, e não resultante de uma localização num centro. (Soussumi, 2004).

Cabe também a ressalva, como destacado por muitos autores, que se trata de uma via de mão dupla, há tanto interesse dos psicólogos e especialistas em ciências humanas nos processos neurológicos, como dos neuropsiquiatras e psicofarmacologistas nos processos simbólicos, e possivelmente, como atestam os trabalhos do neuroantropólogo, como ele se autodenomina, Oliver Sacks (1933 - 2015), há mais contribuições da psicanálise à neurociência, ou seja de estudos psicanalíticos e/ou investigações clínicas de pacientes com patologias neurológicas baseadas na metodologia psicanalítica do que contribuições da neurologia à psicanálise. (Caeiro, 2020)

A Neuropsicanálise apresentou-se em nossos dias como uma tendência natural de retorno ao “projeto de uma psicologia científica para neurologistas” da proposição inicial de Sigmund Freud, somadas às suas experiências com a psicofarmacologia e dependência de drogas (especialmente a cocaína) e o atual desenvolvimento da farmacopsicoterapia. A psicofarmacologia ou melhor descrita como farmacopsicoterapia vem se consolidando no tratamento das psicoses, depressão, e, em vias de desenvolvimento da psicoterapia assistida com psicodélicos, aperfeiçoando a interpretação dos sonhos. Observe-se que na psicoterapia psicodélica a eficácia se dá devido não só por fatores neuroquímicos mas também por fatores não-farmacológicos, como por exemplo, a partir da intensidade do vínculo entre pacientes e terapeutas (transferência, compliance) ou uma reorganização do self do paciente.(Schenberg, 2018)

GENÉTICA E PSICANÁLISE

Um dos aspectos bastante conhecidos das contribuições da psicanálise à genética evolutiva ou epigenética, veio a ser publicado por ele em 1912-1913 (Totem e tabu, algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e dos neuróticos) onde relaciona a estrutura básica do parentesco humano (a proibição do incesto) ao processo civilizatório e ao que chamamos hoje de jus naturalis, nas ciências jurídicas (corpo de doutrinas enraizadas das leis naturais) que merece estudos à parte como já vem sendo realizados pelos que compreendem a formação social da psique ou mente humana.  

Contribuição relevante às relações genética evolutiva com a psicanálise também devem ser concedidas a C. G Jung (1875 - 1961), a quem Freud atribui a sugestão de explorar na teoria psicanalítica, juntamente a metodologia clínica, o paralelismo entre os desenvolvimentos ontogenético e filogenético, no campo da antropologia, juntamente com as leituras da psicologia dos povos/ etnopsicologia [Völkerpsychologie], de Wilhelm Wundt (1832 1920)

Vale citar essa contribuição de Jung sobre a “oposição entre a carga hereditária do ser natural primitivo e o recém-nascido” e ou a semelhança dos símbolos míticos e oníricos. Literalmente:

...A natureza humana é caracterizada por uma instintividade ainda não abatida, bem como pelo fato de estar totalmente à mercê de seus instintos. A carga hereditária oposta a esta situação é constituída pelos sedimentos mnêmicos de todas as experiências legadas pelos ancestrais. As pessoas muitas vezes se sentem inclinadas a encarar tal hipótese com ceticismo, pensando que se trata de "ideias herdadas". Evidentemente, não é disto que estamos falando. Trata-se, pelo contrário, de possibilidades herdadas de ideias, de "pistas" que foram traçadas gradualmente pelas experiências acumuladas pelos ancestrais. Negar que estas pistas foram herdadas eqüivaleria a negar a hereditariedade do cérebro. Por razões de coerência, tais pessoas deveriam afirmar que a criança nasce com um cérebro de macaco. Mas, uma vez que a criança nasce com um cérebro humano, este cérebro, mais cedo ou mais tarde, começará a funcionar de maneira humana e o fará, necessariamente, ao nível dos ancestrais mais recentes. Jung, 1928

HEREDITARIEDADE SIMILAR E DISSIMILAR

Uma outra questão interessante e relevante em nossos dias de ciência pós genomas reflexões de Freud sobre a herdabilidade das patologias nervosas que se diferenciam por uma hereditariedade similar e o que se conhece como hereditariedade dissimilar. Ou seja, buscava explicar o que hoje reconhecemos como padrões de herança recessiva e dominante e/ou monogênica e multifatorial.

Observe-se que esse texto é de 1896, anterior, portanto à redescoberta de Gregor Johann Mendel (Heinzendorf bei Odrau, 1822 - Brno, 1884). Decerto Mendel foi um conterrâneo de Freud no império austro-húngaro (Brünn). Freud (1856- 1939) nasceu em Příbor (em alemão Freiberg in Mähren), um município na República Checa na região da Morávia Império Austro-Húngaro existiu de 1867 a 1918, quando entrou em colapso após a sua derrota na Primeira Guerra Mundial. Sucedido por Áustria Alemã

Como se sabe o trabalho de Mendel ficou esquecido até que por volta de 1900-1903, Hugo De Vries (Haarlem, 1848 - Lunteren, 1935), Carl Correns (Munique, 1864 - Berlim, 1933) e Erich von Tschermak (Viena, 1871 - 1962) por investigação independente, chegaram a resultados semelhantes embora suas publicações sejam quase simultâneas. (Freire-Maia, 1995)

Contudo apesar da relevância nas descobertas de Mendel e remota probabilidade de Freud ter conhecido o conceito de recessividade é bem mais provável que acompanhasse os progressos da genética médica.

Nora e Fraser (1991) cita como precursoras as observações de Hipócrates sobre a concentração familiar e herança da cor dos olhos calvície e epilepsia. Foi William Bateson (1861 - 1926) quem usou pela primeira vez o termo “genética” (1905) para descrever o estudo da variação e hereditariedade, influenciado tanto pela abordagem de Charles Darwin, quanto pela abordagem de Francis Galton (1822 - 1911) sobre Métodos quantitativos ("biométricos").

No livro “A short history of medical genetics” de  Peter S Harper (2008) no capítulo "Antes de Mendel" descreve-se algumas das primeiras ideias sobre  distúrbios genéticos, com exemplos intrigantes, como o trabalho de Joseph Adams (1756-1818), que não apenas distinguiu entre distúrbios congênitos hereditários e "disposições" (onde o distúrbio se desenvolve gradualmente ao longo da vida), mas também categorizou 'predisposições', onde um fator externo também é necessário para que o transtorno se torne aparente em um indivíduo. (Motulsky, 1959)

As principais contribuições de Freud além da genética evolutiva foram: o reconhecimento de padrões diferenciados de herança das doenças nervosas, ênfase nos fatores ambientais (tanto na etiologia como nas possibilidades de intervenção clínica) e suas contribuições à genética do desenvolvimento e/ou identificação (embora sem deter-se nos processos biológicos ou genéticos propriamente ditos). São conhecidas as suas proposições sobre as fases ou estágios de desenvolvimento da sexualidade e/ou maturação do sistema nervoso autônomo (corticalização ou controle voluntário dos reflexos de deglutição /sucção, defecação) e neuroendócrino (como daríamos hoje relacionando estes à sequência de desenvolvimento neuropsicomotora).

Em “Três ensaios sobre a sexualidade” (Freud 1905), talvez a principal obra sobres os estágios e fases do desenvolvimento nos apresenta duas aplicações dos conceitos, hoje integrantes da genética moderna: a noção de variações constitucionais capazes, sem a ajuda de outros fatores ontogenéticos, determinar a configuração de uma vida sexual anormal. Observe-se que ao longo de sua obra destaca uma disposição contrária, a produção de fenocópias, ou seja características originadas por influências principalmente ambientais, como também epigenéticas.   

Sobre a influência dos fatores psicossociais no desenvolvimento da fase de latência escreveu:

...durante esse período de latência total ou parcial são formados os poderes psíquicos que depois se colocarão como entraves no caminho do instinto sexual e, ao modo de represas, estreitarão seu curso (o nojo, o sentimento de vergonha, os ideais estéticos e morais). Com as crianças civilizadas temos a impressão de que é obra da educação construir tais represas, e certamente a educação faz muito nesse sentido. Na realidade, porém, esse desenvolvimento é organicamente condicionado, fixado hereditariamente, e pode se produzir, às vezes, sem qualquer auxílio da educação. Esta permanece inteiramente no domínio que lhe foi assinalado, quando se limita a seguir o que foi organicamente traçado, dando-lhe uma marca um tanto mais limpa e mais profunda.... (Freud, 1905)

Poderíamos citar ainda diversos psicanalistas e dissidentes de Freud que deram continuidade a análise do desenvolvimento infantil e suas consequências na vida adulta, a exemplo de sua filha Anna Freud (1895 - 1982) com sua publicação e estudos sobre “a infância normal e patológica, Melanie Klein (1882 - 1960) mas não há dúvidas que as principais contribuições ou melhor aproximações interdisciplinares com a neurobiologia e genética do desenvolvimento vieram de John Bowlby (1907- 1990) e Mary Ainsworth (1913-1999 indiretamente da Etologia de Konrad Lorenz (1903-1989) e principalmente de René Spitz (1887 -1974)

René Spitz desenvolveu uma "teoria genética e de campo" sobre as hipóteses psicanalíticas da formação do ego onde sintetiza suas observações sobre o desenvolvimento psicológico, traçando paralelos com a embriologia, taxa de metabolismo diferenciada nas distas fases e outros componentes referentes ao desenvolvimento do cérebro (anlage) e da psique a partir dos mecanismos liberadores inatos e interação do binômio mãe filho. Fundamentava-se tanto na metodologia clínica como nas técnicas de  observação direta de crianças com um método quase experimental (neuro-etológico) - estudando aspectos normais e patológicos da relação afetiva e emocional do bebê  com sua mãe.  Pode ser considerado pioneiro na utilização da fotografia e filmes de bebês em interações com suas mães. Além do estudo da obra e contatos pessoais com Sigmund Freud, também acompanhou a obra e as proposições Anna Freud e Melanie Klein. Seus estudos o conduziram a novas concepções da posição depressiva de Klein, caracterizando a síndrome resultante da privação extrema que denominou de "hospitalismo". (Spitz, 1979 a e b)


REFERÊNCIAS

DAVID, Mário; CAEIRO, Lara. O nascimento e o desenvolvimento da neuro-psicanálise. Vínculo,  São Paulo ,  v. 17, n. 1, p. 01-24, jun.  2020 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-24902020000100002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  18  out.  2022.  http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v17n1p1-24.

FREIRE-MAIA. Newton. Gregor Mendel, vida e obra. SP: T.A Queiroz, 1995

FREUD, Sigmund. (1896) A hereditariedade e a etiologia das neuroses In: _____. Primeiras publicações psicanalíticas (1893-1899). In S. Freud. Ed. standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. 3. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FREUD, Sigmund (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Sigmund Freud. Obras Completas, tradução Paulo César de Souza. Vol.6. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

FREUD, Sigmund. (1917) Teoria geral das neuroses. Conferência XVI (Psicanálise e psiquiatria In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol.16). Rio de Janeiro: Imago, 1974.

FREUD, S. (1913). Totem e tabu. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol.13). Rio de Janeiro: Imago, 1974.

GERRETSEN P; MÜLLER DJ; TIWARI A; MAMO D; POLLOCK BG; The intersection of pharmacology, imaging, and genetics in the development of personalized medicine. Dialogues Clin Neurosci. 2009;11(4):363-376. doi:10.31887/DCNS.2009.11.4/pgerretsen https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3181934/

HARPER Peter S.  A short history of medical genetics”. UK:  Oxford University Press, 2008 apud: Hodgson S. A short history of medical genetics. Clin Med (Lond). 2009;9(5):501-502. doi:10.7861/clinmedicine.9-5-501 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4953469/

JUNG, Carl Gustav (1928). A energia psíquica. Petrópolis: Editora Vozes, 2002 p.38

LÉVI-STRAUSS, Claude. AS ESTRUTURAS ELEMENTARES DO PARENTESCO. SP Vozes/EDUSP, 1976, p.63

MOTULSKY, ARNO G. (1959). Joseph Adams (1756-1818). A.M.A. Archives of Internal Medicine, 104(3), 490–. doi:10.1001/archinte.1959.00270090144020

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ver texto de Freud, 1896

A hereditariedade e a etiologia das neuroses

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terça-feira, 27 de setembro de 2022

Da mitologia africana jeje-nagô aos santos católicos sírio judaico-cristãos do império otomano

Esse é um texto preliminar, uma espécie de pré - print para um futuro artigo. Apesar desse blog ter sido pensado como textos de apoio ao desenvolvimento da medicina comportamental, na ótica behaviorista da teoria cognitiva comportamental, ou da medicina psicossomática, ao longo do tempo as questões culturais e históricas tem sido mais úteis tanto para minha prática clínica como psicólogo de uma secretaria de saúde pública, como para o estudante de acupuntura (medicina tradicional chinesa) e fitoterapia que sou. No mais tenho visto que hábitos e projetos de vida dependem tanto do contexto sócio-cultural e familar como de decisões individuais (facilitadas pela psicoterapia). A continuidade desse artigo pretende deter-se na dimensão simbólica da cura obtida pelo contato com a divindade, que nas tradições cristãs posteriores, se desenvolveu no exercício do sacramento da confissão (penitência), deturpado pelos católicos da "inquisição", abolido pelos neo-protestantes pós luteranos, para se obter o perdão, a dor da cura, e a enigmática associação da imagem deles aos cuidados e atenção às crianças, e a solidariedade e união entre os irmãos.


       

Alguns relatos atestam que Cosme e Damião, eram originários da Arábia (Cilícia?), mas filhos de pais cristãos. Há várias versões, mas nenhuma comprovada com fundamento histórico. Sua fama circula o mundo, diversas igrejas foram construídas para eles, sabe-se que eram dois irmãos, bons e caridosos que realizavam milagres.

A questão da prática médica deles, da cultura pré-islâmica e “cristianismo primitivo”, entretanto, não se limita à medicina dos milagres, sendo o mais conhecido milagre deles, o transplante de parte da perna logo abaixo do joelho como revelam as pinturas de Fra Angelico (1438) Master de Los Balbases (1495) e outros. Observe-se que a prática da cirurgia em Bizâncio é atestada por listas de instrumentos cirúrgicos e por outros relatos de intervenções que demostram a continuidade da prática tal como o primeiro relato de separação de gêmeos siameses no século X. (Congourdeau). Entre lendas e relatos há as questões a ser compreendidas quanto as origens e desenvolvimento, por exemplo: da geriatria clínica, fitoterapia, livros de registros de anamnese e prontuários e outras formas de arquivo de informações médicas, no contexto da medicina bizantina que sabidamente criou hospitais públicos associados à ambulatórios. (Józsa; Lapin; Miller) 

Contudo a medicina bizantina ainda traz  questões controversas. Alguns supõem poucas inovações teóricas e outros acusam o desenvolvimento do fanatismo religioso (um retrocesso da medicina hipocrática salva pela retomada pelos árabes maometanos? Mas se chegou até eles, quem foram os copistas?).  Há certo consenso quanto a prática da saúde coletiva, ética humanitária da caridade e/ou justiça social, com a invenção de hospitais públicos funcionais, no modelo onde até hoje tratamos e onde ensinamos medicina. (Congourdeau). 

Quanto a perda das conquistas galeno – hipocráticas, Marie-Hélène Congourdeau assinala que  os livros didáticos  da época e as terapia descritas às vezes nos oferece observações pessoais dos copistas, testemunham um trabalho de reflexão, atualização, mesmo refutação dos grandes autores da antiguidade.

Parece ser um consenso que Cosme e Damião viveram na Síria na época do imperador Diocleciano. O imperador Diocleciano (nascido Diócles; Salona, 22 de dezembro de 243/245 – Espalato, 3 de dezembro de 311/312) foi o imperador romano de 284 até sua abdicação em 305. (Wikipédia)

A Arábia, hoje, constitui-se da península do Sul da Ásia, entre o mar Vermelho e o golfo Pérsico, e que inclui a região desértica e diversos Estados (Emirados Árabes Unidos) a saber a Arábia Saudita, Iêmem, Omâ (Coveite,  Catar, Bareine/ Xiita)  circundando o Golfo pérsico junto com  o Irã (antiga Pérsia). 

A Síria, cuja cidade mais conhecida é Damasco situa-se entre a Jordânia, o Iraque e a Turquia. Hoje separada de Israel e conflitada região da Palestina pelo Líbano, região Jordânia, Sinai e o Egito.

Também foram chamados de "santos pobres". Muitos esforços foram feitos para demonstrar que Cosme e Damião não existiram de fato, que eram apenas a versão cristã dos filhos gêmeos pagãos de Zeus. Assim como no Brasil há um sincretismo com a divindade dos Yourubás o Orixá Ibeji, gêmeos (mabaços).

Decerto gêmeos, os primeiros gêmeos entre os iorubás - que em uma de suas histórias  nascem como abicus (aqueles que nascem para morrer e nascer de novo e morrer) na esposa de importante nobre, responsável pela grande mortandade de macacos promovida por ele, naquele tempo (como se fosse um castigo), assim revelado por Ifá.  Sempre em defesa da vida, por isso médicos ?

Há um outro mito, onde os Ibeji vencem enganam a morte, dançando, ora um, ora outro, até ela ficar cansada e ir embora, e assim debelam uma epidemia causada por ela, mito também recolhido e publicado por Reginaldo Prandi.

Os livros católicos da vida dos santos os destacam como mártires cristãos e representantes da caridade - por não aceitarem nenhum pagamento por seus serviços, e foram por isso chamados de anargiras "aqueles que não recebem prata (argentum) dinheiro". Inclusive conta-se uma história milagrosa de um camelo, que assumiu a voz humana, explicando que Damião, aceitou o modesto honorário oferecido pela viuva Paládia, curada por eles, em nome da caridade, para não humilhar a senhora que insistia na oferta. (Giovannini; Sgarbossa) 

Um mito dos Lucumis (descendentes dos Yorubás em Cuba) recolhido pelo poeta cubano Julio Moracen, que publiquei no  "estudo sobre orixás, plantas medicinais e a medicina de matriz africana entre os descendentes dos Iorubás na Bahia" conta que foi graças aos Ibejis que cessou o costume de abandonar no mato, entregue às hienas e abutres as crianças portadoras de malformações congênitas (incluindo os gêmeos unidos ou não)  e também os idosos “muito velhos".

Vale destacar esse aspecto da medicina porque a ética médica é que vem sendo abandonada com o avanço do empresariamento médico dos planos de saúde, que graças ao drible da legislação e constituição do país, para fugir da legislação e da fiscalização da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), os empresários de  seguradoras e planos conseguiram estabelecer por decreto que os planos coletivos (a modalidade que substituiu os planos individuais) que não precisam submeter seus reajustes anuais ao órgão controlador e podem ser rescindidos unilateralmente pelas operadoras quando estas bem entenderem, ou seja as leis de proteção aos idosos foi boicotada e as mensalidades dos planos aumentam com valores que chagam ao dobro do permitido pela ANS.

Somente para citar outro exemplo, além do sucateamento dos serviços públicos de saúde (com orçamento congelado por 20 anos por Michel Temer), a recente e indecorosa decisão STJ Superior Tribunal de Justiça para que os planos de saúde não precisem cobrir procedimentos fora da lista da ANS, deixando centenas, senão milhares, de doenças genéticas fora e/ou excluindo demandas clínicas que exigem procedimentos mais complexos.   Naturalmente a lista da ANS que contém toda a cobertura obrigatória inclui apenas procedimentos de baixo custo, elevada frequência ou alta lucratividade. De nada mais vale o código de ética profissional da profissão médica que inclui entre os princípios fundamentais que:

 - A medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio. (Art.IX)

 - O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivos de lucro, finalidade política ou religiosa. (Art.X)

PARA SABER MAIS, VER:

METTEN, Antoine; COSTA, Laís Silveira; GADELHA, Carlos Augusto Grabois; MALDONADO, Jose. A introdução do complexo econômico industrial da saúde na agenda de desenvolvimento: uma análise a partir do modelo de fluxos múltiplos de Kingdon. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro,v. 49, n. 4, p. 915-936, jul./ago. 2015. Disponível em https://www.scielo.br/j/rap/a/Vks4xRZKjvnfvXFCMK8pHXy/?format=pdf&lang=pt Acesso, 27/09/2022

BAHIA, Ligia. Mudanças e padrões das relações público-privado: seguros e planos de saúde no Brasil. Rio de Janeiro; Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. 1999. Tese Apresentada para a Obtenção do Título de Doutor em Saúde Pública. Orientador: Maria Lucia T. Werneck Vianna https://pesquisa.bvsalud.org/brasil/resource/pt/sus-18266 Acesso, 27/09/2022

PAIM, Jairnilson. Uma leitura sobre os 30 anos do SUS. https://outraspalavras.net/outrasaude/jairnilson-paim-uma-leitura-sobre-os-30-anos-do-sus/ e também no https://youtu.be/C3KRpdIdOGk Acesso, 27/09/2022

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REFERÊNCIAS

Congourdeau MH. La médecine byzantine. Une réévaluation nécessaire [Byzantine medicine]. Rev Prat. 2004 Oct 15;54(15):1733-7. French. PMID: 15605590. https://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-00693544/document

Costa, Paulo Pedro P. R. Um estudo sobre orixás,plantas medicinais e amedicina de matriz africanaentre os descendentes dosIorubás na Bahia. https://www.academia.edu/6388392/orix%C3%A1s_plantas_medicinais_e_a_medicina_de_matriz_africana_entre_os_descendentes_dos_Iorub%C3%A1s_na_Bahia Acesso, 27/09/2022

Eclesia - Arquidiocese Ortodoxa Grega de Buenos Aires e América do Sul. Santos Cosme e Damião, Taumaturgos e anárgiros, mártires (+284) http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/hagiografia/ss_cosme_e_damiao.html Acesso, 27/09/2022

Józsa L. A kórházi rendszer kialakulása a Bizánci Birodalomban [The establishment of the hospital-system in the Byzantine Empire]. Orvostort Kozl. 2011;57(1-4):5-24. Hungarian. PMID: 22533247. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22533247/

Giovannini, Luigi; Sgarbossa,   Mario. Um santo para cada dia. SP: Ed. Paulus, 1997 https://www.paulus.com.br/portal/santo/santos-cosme-e-damiao-martires/ Acesso, 27/09/2022

Lapin A. Warum kann ausgerechnet Byzanz als Wiege der klinischen Geriatrie betrachtet werden? [Why should Byzantium be considered as a cradle of clinical geriatrics?]. Wien Med Wochenschr. 2008;158(17-18):471-80. German. doi: 10.1007/s10354-008-0578-z. PMID: 18807237. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/18807237/

Lima, Vivaldo Costa. Cosme e Damião, o culto aos santos gêmeos no Brasil e na África. Salvador: Corrupio, 2005

Miller TS. The birth of the hospital in the Byzantine Empire. Henry E Sigerist Suppl Bull Hist Med. 1985;(10):1-288. PMID: 3902734.

Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. SP: Companhia das Letras, 2011

Xavier, Fritz. Cosme damião Médicos e Santos" coleção espiritualismo. RJ: Ediouro ...

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